”Pobres Criaturas” une Frankenstein e feminismo

Por: Salomão de Castro

“O pacto faustiano cuja tentação o dispositivo de sexualidade inscreveu em nós é, doravante, o seguinte: trocar a vida inteira pelo próprio sexo, pela verdade e soberania do sexo. O sexo bem vale a morte”. (Michel Foucault – “História da Sexualidade”)

Na Londres da Era vitoriana (1837-1901), a partir de um experimento feito pelo cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe, de “A Última Tentação de Cristo”), a jovem Bella Baxter (Emma Stone, de “La La Land”) ganha, por assim dizer, “nova vida”. “Pobres Criaturas” (Poor Things), novo filme do diretor Yorgos Lanthimos (“A Favorita”), estreia em todo o Brasil no dia 1º de fevereiro, aliando a influência do clássico “Frankestein de Mary Shelley” a uma perspectiva feminista, a partir dos percalços de sua protagonista.

Baseado no romance de Alasdair Gray, publicado em 1992, com roteiro de Tony McNamara, “Pobres Criaturas” se estabelece a partir da relação entre “criador” (Godwin) e “criatura” (Bella), para uma trama em que, como no clássico Frankenstein, os limites éticos da Medicina – enquanto Ciência – são questionados, com o sexo tendo papel central.

Habituado a tramas desconcertantes em obras como “O Lagosta” e “A Favorita”, o cineasta grego Yorgos Lanthimos encontra aqui o cenário ideal para seu estilo, em que composições visuais intensas e enquadramentos distorcidos estão à disposição de uma história disruptiva desde o seu início. O filme oscila o uso do preto e branco e do colorido conforme a narrativa exige e passeia por Londres, Lisboa, Alexandria e Paris, além de um navio, com imagens impressionantes – mas que nunca superam a qualidade da história narrada.

Filme é dirigido por Yorgos Lanthimos

Coragem marca performance de Emma Stone

Com elementos do terror e do drama, “Pobres Criaturas” nos incomoda por se estabelecer como comédia – mas daquelas que provoca risos nervosos, incômodos, alusivos ao ridículo do que os homens são capazes de fazer para dominar uma mulher. A atuação de Emma Stone é corajosa por sua entrega física e mental à personagem durante os diversos atos do filme. Uma performance que, pela intensidade, remete à de Natalie Portman em “Cisne Negro”.

A disputa por Bella envolve homens de temperamentos distintos: o assistente do cientista Godwin, Max McCandles (Ramy Youssef, de “Tinha Que Ser Ele?”), e o advogado bon vivant Duncan Wedder (Mark Ruffalo, de “Spotlight – Segredos Revelados”). Se o primeiro é contido e munido de aparentes boas intenções, o segundo exala luxúria, estimulando a sexualidade já em erupção desta Bella renascida. Nas interações com ambos, Bella molda sua percepção sobre o mundo, os homens e o que considera necessário para viver em liberdade. Youssef tem atuação contida, discreta, enquanto Ruffalo encarna um boêmio, embriagado de amoralidade, tão ávido pelo sexo quanto sua parceira de cena e de cama. Mas, embora sejam peças relevantes na narrativa, esta é sempre comandada por Bella.

Influências

Se Bella é o coração de “Pobres Criaturas”, a cabeça está no cientista Godwin, vivido de forma magistral por Willem Dafoe. Seja nos diálogos que mantém com sua “criatura”, seja no relacionamento com seus colaboradores, ou na caracterização de um rosto de marcas repulsivas, ele se diferencia dos demais homens em cena não por ser menos machista, mas por sua ambição científica superar qualquer outro tipo de interesse. Não é à toa que, desde o início do filme, Bella sempre o chama de God (Deus, em inglês), explicitando a dimensão cristã da narrativa, o que cria o cenário para transgressões que se sucederão.

Godwin remete a dois personagens icônicos no cinema: o próprio Victor Frankestein (Kenneth Branagh) em “Frankestein de Mary Shelley” (1994), dirigido pelo próprio Branagh, e Eldon Tyrell (Joe Turkel), o responsável pela criação dos replicantes de “Blade Runner – O Caçador de Andróides” (1982), o clássico de ficção científica de Ridley Scott. A exemplo do que ocorre nos dois filmes citados, se cria grande expectativa sobre o reencontro entre criador e criatura, quando há contas a serem ajustadas, no ato final.

“Pobres Criaturas” nos fornece um caminhão de questões – que permanecem incômodas desde a Era vitoriana. Mexe nas feridas de uma sociedade ainda machista e nos provoca a almejar que a sociedade tenha mais Bellas e menos Barbies. Para quem tem dúvida sobre a citação, ela é intencional: este é um filme bem mais feminista que o campeão de bilheterias de 2023 dirigido por Greta Gerwig. O debate está aberto.

Se é para incomodar, que assim seja. Uma certeza: não se fica indiferente a “Pobres Criaturas”.

Balanço na temporada de premiações

Em 2023, foi agraciado com o Leão de Ouro (melhor filme) no Festival de Veneza. “Pobres Criaturas” venceu o Globo de Ouro nas categorias de melhor filme e melhor atriz (Emma Stone), ambas em “comédia/musical”. Concorre aos prêmios do Sindicato dos Produtores (melhor filme) e dos Diretores (Yorgos Lanthimos). No Sindicato dos Atores, disputa os prêmios de melhor atriz (Emma Stone) e melhor ator coadjuvante (Willem Dafoe).

Concorre em 11 categorias no Oscar 2024: melhor filme, diretor, atriz (Emma Stone), ator coadjuvante (Mark Ruffalo), roteiro adaptado, fotografia, desenho de produção, montagem, figurino, maquiagem/penteado e trilha sonora. No Bafta, principal prêmio de cinema da Inglaterra, tem 11 indicações, dentre elas as de melhor filme, melhor filme britânico e melhor atriz (Emma Stone).

Serviço: “Pobres Criaturas” (Poor Things, Irlanda/Reino Unido/Estados Unidos, 2023). Direção: Yorgos Lanthimos. Roteiro: Tony McNamara. Elenco: Emma Stone, Willem Dafoe, Mark Ruffalo, Margaret Qualley, Ramy Youssef, Hanna Schygulla, Christopher Abbott. Duração: 2h21min. Estreia no dia 1º de fevereiro nos cinemas.